”
A rapariga apareceu diante de mim.
– Camarada, você nunca dança. Convido-o.
Não pensei se seria capaz de dançar aquela música. Daria um jeito… Era preferível a ofendê-la. E dancei. Dançamos. Já dançou a rumba com uma congolesa? Se sim, não tenho necessidade de lhe explicar. Se não, são as ancas do mar que o levam num baloiço, ao ritmo da música.
Mas sabe que só se pode dançar bem a rumba um encostado ao outro? E nós dançamos bem. Mas em silêncio. No entanto, eu penso que a dançar também se fala.
O disco acabou, Jonas precipitou-se para o voltar a pôr. Eu abençoei-o mentalmente e voltei a enlaçar o meu par.
– Você está na faculdade? – disse-me ela.
– Sim.
– Mas nunca o vemos.
– É porque tenho muito trabalho.
A conversa parou aí, mas sentíamos que tínhamos muitas outras coisas a dizer. E eu, na época, não sabia falar com as raparigas. A mão que eu tinha espalmada sobre as suas costas subiu um pouco e tocou a sua pele no sítio em que começava o decote. Esse contacto não a deixou insensível. Até tive a impressão de que ela, de forma imperceptível, se encostou mais contra mim. Com a outra mão eu apertava-lhe o polegar. Ela respondeu com uma pressão na mão. Terminamos a dança com as faces encostadas.
”
Categoria: Maior
Adão e Eva – José Régio
Receita da felicidade
Carris
Saltei do comboio!
Esse onde seguem todos excepto os que saltaram comigo.
Ainda o consigo ver no horizonte
e sei que se aligeirar o passo ainda o consigo alcançar
Podia voltar ao comboio e ser de novo o seu rei
mas, se calhar, deixava de ter valor para mim próprio
e assim não me conseguiria suportar.
Tenho um horizonte imenso à minha frente,
mas menos força para o palmilhar
do que a que tinha nas outras vezes em que saltei dos outros comboios
Tenho mais sabedoria, mas menos coragem
tenho mais idade, mas também estou mais velho
Estou naquela altura da viagem em que tivera eu vontade
e podia ultrapassar qualquer comboio,
ou até construir o meu próprio comboio
e levar quem quisesse vir comigo.
Tenho a sabedoria e arrogância,
mas falta-me a vontade, só isso!
E apesar de saber que as pernas têm força e velocidade
não consigo convencê-las a correr
e mesmo sabendo por onde é que tenho que ir
não consigo começar o caminho
Por isso é que ainda aqui estou,
atirado ao chão por mim mesmo
sem conseguir ir em nenhuma direcção
mesmo sabendo
que os abutres começam a acercar-se
e que o único modo que há de não acertar
é ficando parado,
à espera
bastava mexer-me,
bastava tentar,
já saltei do comboio
e para isso foi preciso coragem (ou medo)
mas não serve de nada
se agora ficar
em vez de prosseguir
o medo de seguir pelo caminho errado
parece impedir-me de andar
e logo eu que sei tão bem
que o único modo de acertar
é seguindo um caminho
para quando se chegar ao final
descobrir se acaba ali
ou se retomamos a caminhada
por não ser o caminho certo.
Seguir pelo caminho errado está certo
parar é que é pecado.
E eu…
estou parado.
.
Ti
Abr 2006