Dançar


A rapariga apareceu diante de mim.
– Camarada, você nunca dança. Convido-o.
Não pensei se seria capaz de dançar aquela música. Daria um jeito… Era preferível a ofendê-la. E dancei. Dançamos. Já dançou a rumba com uma congolesa? Se sim, não tenho necessidade de lhe explicar. Se não, são as ancas do mar que o levam num baloiço, ao ritmo da música.
Mas sabe que só se pode dançar bem a rumba um encostado ao outro? E nós dançamos bem. Mas em silêncio. No entanto, eu penso que a dançar também se fala.
O disco acabou, Jonas precipitou-se para o voltar a pôr. Eu abençoei-o mentalmente e voltei a enlaçar o meu par.
– Você está na faculdade? – disse-me ela.
– Sim.
– Mas nunca o vemos.
– É porque tenho muito trabalho.
A conversa parou aí, mas sentíamos que tínhamos muitas outras coisas a dizer. E eu, na época, não sabia falar com as raparigas. A mão que eu tinha espalmada sobre as suas costas subiu um pouco e tocou a sua pele no sítio em que começava o decote. Esse contacto não a deixou insensível. Até tive a impressão de que ela, de forma imperceptível, se encostou mais contra mim. Com a outra mão eu apertava-lhe o polegar. Ela respondeu com uma pressão na mão. Terminamos a dança com as faces encostadas.

Henri Lopes “Tribalices”

Adão e Eva – José Régio

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a carne lhe pedia.
– E cada um de nós sonhou que o achara…
E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
…Se deu, e se dará continuamente:
Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.
– O meu nome é Adão…
E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!
Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram,
Sobre um leito de terra, cinza e pó!
Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!
Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
– Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.
Assim toda te deste,
E assim todo me dei:
Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado…
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.
E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-me tudo!
…Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.
Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado.
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!
E assim Adão e Eva se conheceram:
Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe…
Eu os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade,
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce…
Depois…
Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
– Que Jeová não sabe perdoar!
O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada…
Continuámos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!
 
 
 
José RégioAdão e Eva

Carris

Saltei do comboio!
Esse onde seguem todos excepto os que saltaram comigo.

Ainda o consigo ver no horizonte
e sei que se aligeirar o passo ainda o consigo alcançar

Podia voltar ao comboio e ser de novo o seu rei
mas, se calhar, deixava de ter valor para mim próprio
e assim não me conseguiria suportar.

Tenho um horizonte imenso à minha frente,
mas menos força para o palmilhar
do que a que tinha nas outras vezes em que saltei dos outros comboios

Tenho mais sabedoria, mas menos coragem
tenho mais idade, mas também estou mais velho

Estou naquela altura da viagem em que tivera eu vontade
e podia ultrapassar qualquer comboio,
ou até construir o meu próprio comboio
e levar quem quisesse vir comigo.
Tenho a sabedoria e arrogância,
mas falta-me a vontade, só isso!

E apesar de saber que as pernas têm força e velocidade
não consigo convencê-las a correr
e mesmo sabendo por onde é que tenho que ir
não consigo começar o caminho

Por isso é que ainda aqui estou,
atirado ao chão por mim mesmo
sem conseguir ir em nenhuma direcção

mesmo sabendo
que os abutres começam a acercar-se
e que o único modo que há de não acertar
é ficando parado,
à espera

bastava mexer-me,
bastava tentar,
já saltei do comboio
e para isso foi preciso coragem (ou medo)

mas não serve de nada
se agora ficar
em vez de prosseguir

o medo de seguir pelo caminho errado
parece impedir-me de andar

e logo eu que sei tão bem
que o único modo de acertar
é seguindo um caminho
para quando se chegar ao final
descobrir se acaba ali
ou se retomamos a caminhada
por não ser o caminho certo.

Seguir pelo caminho errado está certo
parar é que é pecado.

E eu…

estou parado.
.

Ti
Abr 2006